Texto analisado:
CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das
hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 1996.
Por Hernâni Oliveira
O livro do Antropólogo italiano
Massimo Canevacci, “Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais”,
desde a premissa (espécie de prefácio) à edição brasileira, o autor já deixa
sua análise audaciosa ao afirmar que diáspora é sincretismo ou a mãe do mesmo (CANEVACCI,
1996).
O autor explana a importância do
Brasil em sua pesquisa, sendo um país que além das riquezas naturais apresenta
uma riqueza cultural devido à mistura de raças desde sua formação, um palco
perfeito para análise antropológica e sincrética.
Nos seus percursos em terras brasileiras, Canevacci
constatou o quanto pureza cultural/identidade é utópico, pois o sincretismo
transbordava a seus olhos nas multiculturas presentes em solo nacional. Cultura
aqui é plural, suja, experimental, em suma, híbrida. Nessa mesma linha de
pensamento o teórico cultural Stuart Hall defende que “nossas sociedades são
compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas
diversas”[1]. Premissa essa de Hall
também defendida pelo professor Durval Muniz que fala sobre a questão da
identidade nacional, sendo resultado do mito das três raças (brancos, índios e
negros) que gerou mestiçagens além da física, como por exemplo, as culturais,
mas tal fato anularia a lógica de identidade que é algo permanece (ou) idêntico[2].
Lendo esse livro de Canevacci observei que o
sincretismo é o divisor de água dos defensores de uma cultura pura e rígida,
pois logo emerge o quanto a cultura é contaminada, marronizada, híbrida etc. O
desejo de unicidade em tudo, talvez se deva ao caráter religioso herdado da
cultura judaico-cristã que disseminou o querer único da pureza, restringindo-se
no verdadeiro “um”, no sentido de tradição legítima das coisas seja no campo
social, religioso ou político.
A pluralidade, a mistura, a diáspora são
características presentes na cultura brasileira. Canevacci (1996) aponta o
quanto foi preciso o sincretismo do candomblé se camuflar no catolicismo para
sobreviver, um verdadeiro incorporar para manter-se. Isso é aculturação; isso é sincretismo. Pode
ser imposta ou voluntária essa aculturação, sendo o sincretismo fruto de um
contato intercultural e interlinguístico, contagioso como um vírus (CANEVACCI,
1996).
Para Massimo Canevacci a comunicação não é
mesma, pois “a comunicação já não viaja numa só direção – do emissor ao
receptor – mas é cada vez mais bidirecional, tendencialmente interativa e
interfaciável” (1996, p. 24-25). A passividade do consumidor dos mass media
ficou ultrapassada desde a superação da teoria da bala mágica ou teoria hipodérmica,
porque a transformação do mundo contemporâneo resultou em recíprocas
contaminações entre o global e local, nascendo o glocal que é sincrético.
Glocal não é a única palavra sincrética que
Canevacci tratou no livro. Em um dos capítulos intitulado de “Palavras
híbridas” o autor traceja pelas análises antropológicas um vocabulário tenaz em
sua teoria relacionando-as com a hibridização cultural.
A Marronização da
cultura significa seja misturar as diferenças (neste caso não só étnicas, mas
também de estilos de vida, visões do mundo e sensibilidades estéticas), seja
impelir para o abandono radical de uma ordem cultural no governo, feita sob
medida para o imobilismo, psíquico e de trabalho, familiar e político, estético
e estático. (CANEVACCI, 1996, p.28)
A palavra marronizar utilizada
por Canevacci extrapola o sentido apenas da mix das raças, tornando-se uma
síntese das contaminações e sincretismos culturais. Outra palavra de destaque
nessa análise é a dialética seja ela sintética ou sincrética, “o que a
dialética sintética limpa, ordena, supera, a dialética sincrética suja,
desordena, mistura, fragmenta e sobrepõe” (CANEVACCI, 1996, p. 39). Essa
concepção desses dois pólos opostos da dialética resultou quando a razão humana
elevou o pensamento ocidental com a dialética-híbrida. O híbrido não é mais um
mero resíduo e sim o anúncio de multiformes sincretismos (CANEVACCI, 1996).
Segundo Massimo Canevacci a
identidade é móvel, inventiva e maculada pela interação constante entre os
povos, e dessa forma “[...] a palavra origem, deve ser destronado, pois reprime
as potencialidades polifônicas e sincréticas da identidade” (1996, p. 44). Essa
citação me fez lembrar do texto de Durval Muniz em que ele defende que “as
tradições são sempre invenções feitas por grupos humanos numa determinada época.
Não há algo tradicional desde sempre e nada do que é tradicional está isento de
modificação, de transformação”[3]. Dessa forma, pensar em
origem é um jogo de infinitas possibilidades e labirintos/círculos que não se
fecham.
Canevacci
fala que o tempo não pára, o círculo não se fecha, pois rupturas, montagens são
recorrentes e põe o tempo em marcha novamente. E para Hall,
A alternativa não é
apegar-se a modelos fechados, unitários e homogêneos de pertencimento cultural,
mas abarcar os processos mais amplos, o jogo da semelhança e da diferença que
estão transformando a cultura no mundo inteiro. Esse é o caminho da diáspora,
que é a trajetória de um povo moderno e de uma cultura moderna[4].
O autor traça uma ideia interessante referente
ao hibridismo presente na arquitetura de Berlim. No pós-guerra, Berlim e seus
escombros percorrem tanto pelo falso comunismo como na falta da democracia real
por isso é sincrética. Os espaços nazistas seja ele escombros ou não ganharam
novas utilizações no ensejo social (teatros, por exemplo). “Numa dessas peças,
inspirado pelos vizinhos Semelais, Joh Hassel usa água como material sonoro:
água que cai em rápidas cascatas ou água percutida por panos lavados [...]” (CANEVACCI,
1996, p. 53), com essa citação lembrei-me da disciplina de estética do semestre
passado, do percussionista Naná Vasconcelos. Para Canevacci o sincretismo
cultural é perceptível nas sonoridades musicais e pode resolver questões éticas
e estéticas (CANEVACCI, 1996). O sincretismo musical da banda brasileira
Sepultura é um bom exemplo citado por Canevacci pela canção Itsári, devido à
mistura dos ritos musicais dos Xavantes e o som metálico da banda.
Por isso a cultura, a
comunicação e o consumo formam um novo tecido-patchwork que varre as distinções
tradicionais entre desníveis culturais. Seu entrelaçamento constitui o novo
sistema da pós-modernidade, que valoriza de um modo novo a fantasmagoria do
fetichismo (CANEVACCI, 1996, p. 57).
Temos então o novo indivíduo,
consumidor formulado na pós-modernidade, que não é passivo muito menos estático,
está em movimento, mudança, colagens. E conhecer o público cada vez mais híbrido
é papel do comunicador que tenta atingir não um indivíduo ou classe, mas a
abstração do plural e o fetichismo.
O
livro do Antropólogo italiano Massimo Canevacci, “Sincretismos: uma exploração
das hibridações culturais”, em sua parte final “o sincretismo é aplicado” (p.
64) como o próprio autor ressalta. Por meio das análises antropológicas de
Canevacci acerca das experimentações das hibridizações e o diálogo entre
cyberpunk (cultura metropolitana) e os Bororos (cultura étnica), além de textos
e autores que circunscreve essas linhas sincréticas.
Do sincretismo nativo e o urbano,
nasce o cyber-bororo. Fruto das permutas culturais de duas subjetividades,
cultura nativa e cultura metropolitana, resulta em grafismos corporais, cantos
híbridos e caveiras estilizando arte.
Canevacci conta-nos nas linhas desse
livro um encontro marcante e altamente significativo para um antropólogo como
ele, a interação de índios Xavantes (Brasileiros) e Guaranis (Argentinos). Essa
análise de Canevacci é dividida em dois tempos, como se fosse uma partida
simbólica de futebol (diferente da partida que acontece entre indígenas versus
argentinos, tendo como árbitro o Massimo); o primeiro tempo trata basicamente
do encontro entre os indígenas, e as abordagens Xavantes em busca da unicidade
da identidade indígena que transcende as fronteiras do Mercosul; o segundo
tempo é a visita do Xavante em terras europeias, onde é trocado os papeis se
tornando agora o índio o estrangeiro, o viajante etc.
Através da observação do Massimo
Canevacci que transcreveu como se deu esse encontro de autóctones de nações
diferentes, percebemos o quanto esses povos indígenas sofreram influências do
contágio ocidental. As roupas dos Índios Xavantes mostram os indícios dos
sincretismos corporais com a contaminação do homem branco que mudou profundamente
seu estilo de vida sobrando espaço além das expressões físicas, adornos, como
brincos e estilo de corte de cabelo que diferem do homem ocidental. O índio em
linhas gerais se camufla em homem ocidental em busca de uma identidade que está
demasiadamente fragmentada. Assim como mantem alguns traços indígenas para
garantir identidade e legitimidade, mas absorver utilidades ocidentais que
facilitem a vida dos povos indígenas é uma ponderação do Xavante Domingos ao
recomendar utilizações de tratores aos povos Guaranis, esse um bom sincretismo.
Na partida de futebol dos nativos e
os moradores de Iguaçu, que contou com Canevacci como juiz, o autor fica
extremamente satisfeito, pois vivenciou um acontecimento glocal, pois reuniu
elementos plurais, sincréticos, híbridos entorno de fluxos comunicativos
desportivos globais como o futebol.
Na visita do Xavante Domingo as terras
europeias especificamente a Itália, nação de Canevacci, foram invertidos os
papeis, agora o índio é o estrangeiro que sai do novo mundo e adentra em solo
do velho mundo detectando em sua visita elementos culturais religiosos, como a
basílica de São Pedro que ofusca a percepção do indígena catequizado que está
diante do poderio daquela que por muito tempo foi sustentada pelas riquezas
ofertadas pelas metrópoles católicas coloniais.
Massimo Canevacci é contra a
ideologia do “um” ou “primeiro”, pois o um elimina o plural e por seguinte a
noção de sincretismo. O um sempre é almejado por sociedades que põem a sua
cultura como uma, primeira, pura e autêntica, contrastando com a de povos
estrangeiros que são catalogadas como cultura de segundo ou terceiro mundo em
diante. Essa hierarquia cultural sempre foi uma maneira de civilizações se
sobreporem em relação às dominadas.
Para Canevacci, as culturas são plurais. O que
deve ser feito é a proliferação do “eu” pluralizando e tornando-o em “eus”,
para que ocorra a multiplicidade de “eus” no corpo subjetivo e assim chegar ao
que defende Durval Muniz, “culturas no plural, constituídas pela multiplicação
do singular”[5].
Essa obra de Massimo Canevacci traz
nas poucas páginas, trocas culturais, conexões, contaminações, hibridizações
diversas que despertam o olhar do pesquisador e comunicador social em abranger
a percepções do mundo sincrético, que como a própria capa do livro remonta ser
cíclica que não se fecha, se expande; culturas que passaram e deixaram de
alguma forma sua cultura perpetuar pela assimilação de outra, formando as teias
de significações da raça humana. Pois sincretismo é comunicação.
[1] HALL, Stuart. Pensando a diáspora:
reflexões sobre a terra no exterior. In: SOVIK, Liv (Org.). Da diáspora: identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no
Brasil, 2003, p. 30.
[2] ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de.
Fragmentos do discurso cultural: por uma análise crítica das categorias e
conceitos que embasam o discurso sobre a cultura no Brasil. In: NUSSBAUMER,
Gisele (org.) Teorias e políticas da
cultura: visões multidisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2007.
[3] Ibid., p. 16.
[4] HALL, Stuart. Pensando a diáspora:
reflexões sobre a terra no exterior. In: SOVIK, Liv (Org.). Da diáspora: identidades e mediações
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no
Brasil, 2003, p. 47.
[5]
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de.
Fragmentos do discurso cultural: por uma análise crítica das categorias e
conceitos que embasam o discurso sobre a cultura no Brasil. In: NUSSBAUMER,
Gisele (org.) Teorias e políticas da
cultura: visões multidisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2007.