Filme analisado:
Narradores de Javé. Direção Eliane
Caffé. Brasil.2003. cor. 100 min.
Por Hernâni Oliveira
O filme, Narradores de Javé da Eliane
Caffé é um dos longas-metragens mais significativos e inteligentes do cinema
brasileiro, pois trata de assuntos base da história e sociologia contemporânea,
como: história e memória, patrimônio imaterial, memória coletiva entre outras
abordagens.
O filme narra à
história de um vilarejo, Javé, que está prestes a ser destruído por causa da
construção de uma usina hidrelétrica. Ao saberem dessa empreitada os moradores
bolam um plano de evitar essa desfeita, e o plano é legitimar a história do
povoado com a criação de um documento, o “livro da salvação” que conte e prove
que o povo javérico também tem um patrimônio histórico e cultural como qualquer
outro do país.
Um dos habitantes desse
vilarejo fica encarregado de formular o livro javérico, por ser o único que
domina a escrita, seu nome é Antônio Biá que sai de casa em casa para coletar
informações dos habitantes mais antigos para escrever essa epopeia. Biá
representa o típico malandro/espertalhão nordestino que com muita criatividade
encanta com a lábia, inteligência e destreza. Um ponto importante que o personagem
Biá levanta é a fragilidade que tem a história sendo facilmente manipulada para
ficar mais formosa, aumenta-se ali, oculta-se fatos, faz pensar que essa
história legitimada nos livros ocidentais seja apenas fruto da criatividade de
historiadores.
Quando o personagem Biá
realiza as entrevistas, vários temas interessantes vão surgindo, como por
exemplo, a validade da história oral e seu compromisso com a verdade dos fatos
históricos. Os primórdios do povoado de Javé centram-se na figura de Indalécio,
que é projetado de acordo com o interesse de cada entrevistado, resumindo-se
como figura híbrida, para uns com tom mais europeizado, para outros,
africanizado.
No depoimento dos
moradores, percebe-se uma fusão de discursos, em que o político, o econômico e
o afetivo se misturam, chegando mesmo a fugir do controle dos seus atores.
Interesses públicos e privados se fundiam. Cada um dentro da sua esfera de ação
exprime seus interesses individuais ou coletivos, que poderiam ter um outro
efeito quando expresso de forma localizada e privada[1].
Segundo Halbwachs[2] “cada memória individual é
um ponto de vista sobre a memória coletiva”, pois nossa memória é constituída
não somente das nossas próprias lembranças, mas também das lembranças das
pessoas que compartilharam o momento conosco.
É notável que os
produtores desse filme beberam da história verídica do povoado cearense de Jaguaribara
que devido a construção do açude do Castanhão foi submerso pelas águas. Essa
alusão entre o povoado de Javé e do Jaguaribe mostra o quanto é difícil se manter
viva uma cultura e seu local quando há interesses capitalistas envolvidos. Para
os capitalistas não importa as lembranças vividas no lugar (a igreja onde rezaram;
a praça onde namoraram; a casa onde moraram; o cemitério onde seus entes
queridos estão sepultados; em suma a história que viveram), o coletivo não
vence o capital, ou melhor, o patrimônio imaterial ainda não consegue bater de
frente com o patrimônio material. O imaterial para os capitalistas está mais
para abstrações, já o patrimônio material é físico, logo dá para ganhar
dinheiro com privatizações desses espaços pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional-IPHAN.
A tomada das terras de
Jaguaribara foi justificada por ser um importante mecanismo de controle das
secas e das cheias sazonais que atingem o vale do Jaguaribe, assim como a
hidrelétrica do filme seria um bem não só para o povo de Javé, mas para toda a
região. O conformismo e a resistência desses dois povoados, um fictício e outro
real trazem a discursão, será que a memória não é um patrimônio cultural
suficiente o bastante para servir como campo de força de um povo? Será se esses
locais de construções de usinas hidrelétricas e entre outros não são apenas
monumentos para certos candidatos se vangloriarem em anos eleitorais? Essa
situação fez recordar a construção da usina de Belo Monte na Bacia do Rio
Xingu, e o desprezo pelos povos indígenas que depois de serem despejados
há mais de 500 anos ainda perdem terreno pela ganância do “homem branco”.
Ainda falando em hibridizações, é salutar
falarmos dos sincretismos com temas bíblicos presentes no entrelaçamento do
filme. Os nomes são os mais visíveis indícios dessas aculturações, como o
próprio nome do povoado Javé pertencente à literatura bíblica. O sino da igreja
carregado pelos moradores é se não referência à arca da aliança que foi
transportada junto aos hebreus, um objeto de comunicação entre Deus e seu povo
escolhido. Os personagens Cosme e Damião lembraram muito Ismael e Isaque
(narrados no livro do Gênesis) também buscando legitimidade.
Todavia é o sino da
igrejinha o símbolo da diáspora javélica, que ao final do filme o povoado bate
em retirada, em busca de uma nova terra prometida carregando o sino, que é a
pedra fundamental da Nova Javé e as memórias da antiga Javé. Assim foi em
Jaguaribara, onde “alguns símbolos da atual cidade serão transferidos para a
nova cidade, outros ficarão apenas na memória de seus moradores [...]”[3].
Acredito que esse filme
pode ser adaptado no ensino de história, pois trata de
temas importantes para o historiador, como a compreensão
do patrimônio imaterial, assim como a “dicotomia” da história e memória.
Compreender esses temas é saber delimitar as ações do ser humano, seus
interesses e suas abolições. Descobrir que a cultura traçada pelas teias das
memórias não resistem ainda a ganância do homem capitalista que silencia todos
os opositores, restando apenas a retirada, tema esse bastante enraizado na veia
do nordestino.
[1] SILVEIRA, Edvanir Maia da. Jaguaribara:
uma cidade, uma história. In: Propostas
alternativas: memória e patrimônio cultural do Ceará I. Fortaleza: IMOPEC,
2001, p. 15.
[2] HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice,
1990, p. 51.
[3] SILVEIRA, Edvanir Maia da. Jaguaribara:
uma cidade, uma história. In: Propostas
alternativas: memória e patrimônio cultural do Ceará I. Fortaleza: IMOPEC,
2001, p. 16.