O livro de Janet Malcolm, uma das mais importantes jornalistas estadunidenses do século XX, publicado em 1994, “A mulher calada” (The Silent Woman) teve que ganhar um subtítulo na edição brasileira para que os leitores não se sintam enganados ao lerem a obra. O subtítulo é “Sylvia Plath, TedHughes e os limites da biografia”. A enganação poderia surgir, pois, o leitor poderia confundir o livro como mais uma biografia da emblemática poetisa norte-americana.
É inegável a capacidade de Janet Malcolm na
destreza da descrição. Ao longo dessa obra a autora faz um trabalho minucioso e
penoso em descrever com detalhes seus diálogos com os personagens vivos, que
transitaram nas composições biográficas e participação direta no convívio com a
Sylvia Plath (S. P.). Essas descrições de tudo, seja do espaço onde aconteceram
os encontros ou dos perfis físicos, ajudaram o livro a ganhar mais corpo. Com
isso é evidente que a objetividade em traçar linhas narrativas para a
contextualização das biografias sobre a tal da mulher calada, ficou em segundo
plano. Porém, nessas descrições, vez ou outra Malcolm contextualiza com a
centralidade dessa obra que é o trabalho do biógrafo.
Em linhas gerais, Janet Malcolm fez apenas o
trabalho de reunir o maior número possível de conexões entre as pessoas que de
alguma forma se relacionaram com Sylvia Plath, seja ela viva (os irmãos Hughes,
Alvarez, Thomas) ou ela morta (os biógrafos), e fez uma breve interpretação das
biografias dos biógrafos da Sylvia Plath, além de uma espécie de biografia
velada da S. P. Consideremos velada, pois a força motriz que gira o enredo é a
vida da Sylvia Plath, que através dos diários, cartas e poemas dela, está
presente no decorrer das três partes que dividem a obra de Malcolm.
Esse trabalho investigativo em encontrar vários
personagens, nos parece que Janet Malcolm está dando uma lição de moral nos
biógrafos, que escrevem sobre as vidas das pessoas célebres e que não se
aprofundam no universo de sua persona, ficando apenas com as migalhas que ficam
na superfície. O problema do biógrafo não se aprofundar em seu tema é ele
preencher as lacunas com os “achismos” de suas mentes, que já estão muito maculadas
com o assunto, gerando um posicionamento ou uma inclinação do que considera o
possível de ter ocorrido com as alternativas limitadas de sua teia cultural.
E é justamente esse “achismo” que fez com que a
também poetisa, mas brasileira, Ana Cristina Cesar, sempre temesse ser alvo ou
como ela mesma dizia objeto de estudo “daqueles teóricos que mexem com
Literatura e Psicologia”. O medo de Cesar não é sem motivo. É na biografia que
os últimos segredos são expostos às vistas de todos e em minúcias, a depender
da disposição e intenção de quem os escreve, pois tais relatos por vezes,
vestem-se de afáveis para distorcer a realidade com sutileza e precisão. Ou
pior, espalhando-a com palavras bonitas e bem escritas para ganhar notoriedade.
Daí o excessivo empenho dos familiares de Plath (a mãe, Sr. Plath e os irmãos
Hughes) em controlar o fluxo de informações, pelo receio de que os escritos (da
poetisa e das interpretações que por ventura venham a ser feitas pelos
biógrafos e críticos) pudessem causar impacto sobre a consciência pública,
sobretudo no que diz respeito às considerações morais.
Esse controle disfarçado de receio recai de
forma mais intensa sobre Anne Stevenson, a “única capaz de retratar Sylvia
Plath de maneira a contrabalançar a imagem idealizada pelos libbers”, mas que
acaba por sucumbir todas as informações às pressões da cunhada de Plath, Olwyn
Hughes. A pressão é feita de tal modo que a própria Anne chega a considerá-la
“intolerável”, mesmo subvertendo toda sua escrita às recomendações de Olwyn.
Nesse emaranhado de pressões, sutilezas e
equívocos no processo de construção de biografias, “A mulher calada” deixa
transparecer ao leitor a intenção de Malcolm em tecer uma espécie de “defesa”
de Anne Stevenson. Como ela mesma descreve na obra, um advogado apresentando
uma defesa que sabe ser fraca, mas ainda considera justa por alguma razão
obscura. Essa razão talvez seja a impossibilidade de o jornalista ser
completamente neutro em seu ofício.
Ao que nos parece, a pretensão do livro não é
discutir os limites da biografia ou os “problemas morais” quando esta envolve
pessoas vivas, mas os limites da presença dos próprios biógrafos na vida que
relatam, os limites que vivenciam com suas fontes para depois reportá-los, os
limites da escuta em momentos delicados ou radicais. Todas essas circunstâncias
anunciam a necessidade de estar dentro e fora em simultâneo, num equilíbrio
difícil em mergulhar nos fatos, adentrá-los ao mesmo tempo, em que tenta ficar
fora deles.
E por
que vale a pena refletir sobre “A mulher calada”? Para aprender a ter um olhar
de subjetividade sem se desprender da objetividade, da clareza, da exatidão,
num diálogo constante com os princípios e fundamentos que regem o jornalismo,
sabendo aliar informação, interpretação, opinião e reflexão, sobretudo quando
se trata de pessoas cujas vidas são verdadeiros caleidoscópios, isto é, que não
podem ser restringidas a uma só linha de interpretação, mas várias.